Estilo é Caráter
A palavra. Nutro profunda admiração por aqueles que a dominam. A comunicação é algo tão pervasivo que esquecemos o quão incrível é o ato de nomear algo. E no coração de tudo está a palavra. É mágica — transformar a abstração em realidade concreta através de letras e fonemas reconhecidos.
Com palavras contamos histórias, e com histórias justificamos a existência do mundo, damos sentido aos nossos atos e tudo que nos cerca. Alguns são muitos bons nisso, e esses são os meus heróis, especialmente os que domam a palavra escrita — o texto.
São tantas as subjetividades e muito se pode discutir sobre o que faz um texto ser bom ou ruim, o que separa uma narrativa excelente de um mediana, o que difere alguém que tem talento com a palavra de alguém que não tem.
O que posso dizer aqui com convicção é que Joan Didion tinha esse talento.
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Não recordo a razão porque em meados de 2022 escolhi O Ano do Pensamento Mágico para ser a leitura da vez. Meu processo de escolha de livros é caótico, mas, mais vezes do que me dou conta, cruzo com o ouro.
No livro, em forma de crônica, Didion relata que é uma pessoa aparentemente feliz, em uma vida de classe média alta, com um casamento de décadas com o também escritor John Gregory Dunne, poucas semanas após presenciar a sua única filha, Quintana, se casar. Até que para ela tudo desmorona em poucos dias: de forma súbita, sua filha entra em coma, e, de forma ainda mais abrupta, o seu marido falece por um ataque cardíaco em 30 de dezembro de 2003.
É natural enaltecer as grandes tragédias, os sacrifícios heróicos e as batalhas improváveis,talvez na tentativa de esquecer o fato de que todos os dias, em menor escala, tragédias cotidianas (se não há nisso contradição) ocorrem, alterando o curso de incontáveis vidas, e todos estamos de alguma forma sujeitos a elas. O adoecimento repentino e a perda de pessoas queridas são fatos reais, presentes nas vidas de muita gente, mas realizamos o exercício inconsciente de não lembrar disso na maior parte do tempo. Joan Didion descobriu isso de forma avassaladora e decidiu narrar a sua experiência.
O livro é um recorte de memórias, ao mesmo tempo em que acompanhamos durante um ano a autora tentando descobrir um sentido nesse novo mundo em que foi jogada, um mundo em que ela não mais terá a presença do seu marido, seu companheiro de vida por quase quarenta anos, ao mesmo tempo em que precisa lidar com a situação delicadada sua filha, que segue hospitalizada. Nesse contexto ela experimenta o luto, momentos de fragilidade e desamparo, simultâneos à necessidade de demonstrar força e resiliência por Quintana, que necessita do seu suporte, sendo essa dinãmica a parte mais interessante do livro.
E é na reflexão sobre o passado que Didion encontra o caminho. Como mencionei, as situações trágicas estão a um virar de esquina de todas as pessoas, mas, diferente da maioria, Joan Didion tinha a palavra. Nas recordações do passado ele constrói o vigor para passar por esses momentos.
Não à toa, para mim a passagem mais emocionante do livro se dá quando ela recorda, em meio a outras lembranças ternas, a consciência de que certas coisas, únicas da pessoa que perdeu, tão essenciais em sua vida, existiam agora apenas em memória.
Eu me recordo de ficar com lágrimas nos olhos. Sinto as lágrimas agora. Em retrospecto, esse tinha sido meu presságio, minha mensagem, a nevasca antes do tempo, o presente de aniversário que ninguém mais poderia me dar. Ele tinha apenas mais 25 noites de vida.
(Joan Didion, O Ano do Pensamento Mágico, Capítulo 13)
Em 2023 li Blue Nights, continuação direta de O Ano do Pensamento Mágico, centrado no fato de que pouco tempo após os acontecimentos narrados no primeiro livro, Quintana não resiste e também vem a falecer.
É um livro sobre solidão, e sobre encontrar novas realizações, novos objetivos na vida em uma realidade em que as pessoas mais importantes para ela não mais estavam lá. Novamente, as lembranças são o farol, dessa vez focadas na vida de Quintana, desde a sua infância. É uma leitura de expressão agridoce, que termina em tom positivo: existia vida a ser vivida, apesar da dor, apesar do luto, apesar de todas as coisas. Esse foi o último livro escrito por Joan Didion, que morreu dez anos após sua publicação.
Eu mesma guardei suas cinzas na parede. Eu mesma vi as portas da catedral trancarem-se às seis. Sei o que estou vivenciando agora. Sei o que é a fragilidade, sei o que é o medo. O medo não é daquilo que se perdeu. O que se perdeu já está guardado na parede. O que se perdeu já está atrás das portas trancadas. O medo é daquilo que ainda resta a perder. Talvez você não veja nada que ainda reste a perder. Contudo, não há um único dia na vida dela em que eu não a veja.
(Joan Didion, Blue Nights, Capítulo 35)
Joan foi uma aclamada jornalista, e a sua sensibilidade e perspicácia para descrever os fatos e pessoas é o fio que te puxa para dentro daquele mundo. Mas a sua genialidade se mostra não numa ilusão de impessoalidade meramente descritiva — ela é a protagonista da história, e seus pensamentos e sensações transparecem de forma muito cativante. Ela não se esconde atrás da palavra, ela é a palavra.
Como disse a também extraordinária Clarice Lispector, só se consegue a simplicidade através de muito trabalho. É o reconhecimento desse trabalho, essa sutileza para transformar um momento difícil em arte, que fez com que eu me encantasse com a sua escrita.
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Enquanto lia esses livros, não fazia ideia da aparência da Joan Didion para além das imagens nas capas, então confesso que foi uma boa surpresa descobrir que ela era uma pessoa bonita.
Não vou me alongar listando o porquê de achar ela bonita, mas digo que na juventude ela era alguém com uma imagem atraente, olhos expressivos e aquele je ne sais quoi que todas as musas precisam ter. Então, não foi difícil me imaginar pintando uma tela dela e abracei a oportunidade quando ela surgiu nas minhas aulas de pintura na Academia de Arte da Bahia.

Cogitei várias fotos dela, até chegar a que escolhi, em que com as mãos na face ela lança um olhar sereno, mas ao mesmo tempo sagaz, acompanhado de um sorriso discreto.
Esse foi meu primeiro retrato colorido com tinta óleo e quis que fosse algo de qualidade decente, e para isso alguns desafios surgiram na construção da tela.
Tenho muito do que evoluir no desenho ainda, e sinto que minha habilidade com pincel e tinta é meio inconstante, o que me faz demorar muito com certos aspectos na construção. Porém, a tentativa de superar essas deficiências, com o feeling do que funciona ou não, acabam transformando o processo em um grande experimento, e consigo apreciar o tempo gasto nesse trajeto, especialmente a satisfação em ver as coisas tomarem mais ou menos a forma desejada, encará-las e pensar: “Eu que fiz!”
Algumas escolhas foram tendo que ser feitas. Não queria uma cópia idêntica à imagem, gosto da sensação de que a pintura tenha “cara” de pintura: fiz um fundo meio abstrato, inspirado na capa dos livros dela que li na na edição da Harper Collins; tentei ser liberal com o uso das cores, o objetivo era ter uma pouco mais de contraste e saturação que a imagem original; não pretendi que os desenhos da roupa fossem coincidentes com os da referência por uma questão de “muito chato tentar copiar esses detalhes pequenos” e o meu foco era mesmo a expressão no rosto dela.
Após trazer a tela para casa me dediquei a refinar alguns detalhes e encarei a parte mais difícl de toda pintura — se dar por satisfeito. É sempre uma guerra de atrito.
Ao mesmo tempo em que são muitos os aspectos que me incomodam e que eu mudaria no resultado final, tem também a sensação de que foi um bom exercício e de que aprendi muitas coisas com essa tentativa.
“A melhor vai ser o próxima”, penso eu, até me conformar e me dar por vencido, decretando para mim mesmo o fim do trabalho.

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Enquanto terminava a tela comecei a leitura de O Álbum Branco, livro escrito por Didion na sua juventude, com ensaios sobre a efervescência cultural e política do final da década de 60 e começo da década de 70.
Foi refrescante ver como, em retroscpecto, a vida dela foi tão cheia de acontecimentos marcantes, testemunhados e narrados por ela, sem a sombra dos infortúnios que viriam acontecer no fim da sua vida.
Uma sessão de estúdio com Jim Morrison e o The Doors, jantar com a Janis Joplin, a repercussão das ações do Charles Manson,jardinagem com a Nancy Reagan, a guerra do Vietnã — são alguns exemplos de coisas presenciadas e relatadas por ela nesse livro, e toda essa psicodelia e transformação frenética do mundo é magistralmente transposta para as páginas.
Me peguei discordando de algumas de suas opiniões, o que me deixou muito satisfeito: Feliz porque continuei a adnmirar seu talento com as palavras, confirmando que meu apego ao seu trabalho não se deu apenas por me compadecer com o drama da sua velhice, mas sim por enxergar nela algo especial na sua capacidade para a escrita.
Em um dos textos, ela relembra uma visita feita com sua filha ainda criança ao Instituto de Artes de Chicago onde viram uma das obras da pintora Georgia O’Keeffe:
“Quem fez isso?”, sussurrou ela depois de um tempo. Eu respondi. “Preciso falar com ela”, disse Quintana por fim.
Minha filha estava fazendo, naquele dia em Chicago,uma suposição inconsciente, mas bastante comum, a respeito de pessoas e do trabalho delas. Estava supondo que a glória que viu na obra refletia a glória de sua criadora, que a pintura era a pintora assim como o poema é o poeta, que cada escolha que alguém fazia a sós — cada palavra selecionada ou rejeitada, cada pincelada lançada ou não — traía o caráter desse alguém. Estilo é caráter.
(Joan Didion, O Álbum Branco, Capítulo 11)
Estilo é Caráter? Acho que não. Mas entendo de coração o que ela quis dizer.
Hoje inverto os papéis: é o pintor que fala sobre a obra da escritora.
Também preciso falar com ela.
Senti que precisava falar sobre ela.
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