A MÃO QUE AFAGA
Este quadro sobre uma mulher acendendo um cigarro não é sobre uma mulher acendendo um cigarro
Sou uma pessoa que acredita que o autor de algo não é a única autoridade sobre o sentido daquilo que ele produziu. Indo além, acredito que o autor não é nem a maior autoridade da interpretação de qualquer produção artística. A obra ao ser posta no mundo ganha vida própria, e está aberta a ser lida de diferentes formas, às vezes conflitantes com a visão inicial do autor.
Claro que contexto e intenção são importantes ao tentar entender qualquer coisa, e esse é um tema que demanda muito mais nuance e dedicação do que eu me proponho aqui nesse momento.
Feita essa ressalva, eu, o autor, te digo que essa tela, que retrata um a mulher com um cigarro nos lábios, prestes à acendê-lo com um palito de fósforo, não é sobre a mulher, o cigarro, o fósforo ou fogo.
***
Por vezes me pego num estado de concentração involuntário, uma total absorção e dedicação à minha própria situação, que acredito que até os melhores praticantes de meditação invejariam. A palavra da moda é hiperfoco, mas não sei se ela define exatamente aqueles momentos de ensimesmação tão pura.
Não é um ato, tampouco um fato; é mais uma sensação. Não é ruim, mas também não é plenamente boa. Simplesmente é.
Você não consegue saber quanto tempo fica nessa condição, porque se você toma consciência dela ela já não mais existe. Pode ser lendo um livro, jogando videogame,tomando um café, olhando o mar, pintando um quadro. Comigo tem acontecido com frequência enquanto estou pintando — valorizo esses momentos.
Em um mundo de informações infinitas, e em que a atenção é moeda de troca, a morte do ego aparenta ser inatingível, e é justamente por isso que esses “cochilos” do ego parecem tão especiais.
Minha intenção ao fazer essa tela era captar essa experiência. Não é sobre a mulher ou o cigarro.
É sobre a sensação de acender o cigarro, se é que você me entende.

***